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POESIAS

Haroldo Lamps

poesia

LAMPIÃO

28.09.70

Nos céus há uma estrela cadente, 

Na terra há um homem subindo.

Sonhos de conquista, 

A ação e a luta, 

A paz se vai. 

O semblante da mãe primeira 

É apenas um esboço sem expressão. 

Um sonho magnificente 

Perde-se por entre o mundo. 

Em marte há um homem subindo……

22.08.71

Admirem o louco: 

Seus sonhos têm mais fantasias, 

Suas palavras têm mais sentimentos, 

Seus gestos são pura inocência bela. 

Sua aparência é verdadeiramente feliz ou triste. 

 

Admirem o louco: 

Ele é um homem que como todos os outros 

Não esqueceu a beleza da infância, 

Mas somente ele esqueceu 

Que a vergonha existe, 

Apenas entre os homens, 

E lembrou-se 

Que ela não existe entre as crianças. 

11.03.71

Tinha uma flor no rosto, 

Dentro dela vislumbrava o tesouro da existência. Sua alma era a essência da flor, 

Mas seus pensamentos exalados 

Atingiram pouco mais que um nada.

 

De que serve a rosa na floresta virgem? 

E o sonho é apenas sonho 

Quando não há espaço para ser vivido. 

 

Pedestal do mistério e da crença, 

A luz que nasce e se apaga a cada instante, 

Ideal intacto da existência. 

Era um hippie, 

Flor que nasce e ninguém vê, 

Flor criança que morre todos os dias. 

11.01.72

Instante de paz 

Que traz amargura, 

Entre tantos 

Eu, só em segredos, 

Me sinto, me vejo 

Só a pensar.... 

Pensando em que? 

No universo tão belo, 

Na gente por quem velo. 

Pensando em tudo, 

E nada vendo. 

Vivo sonhando sem ter porque sonhar! 

E a amar tanto tempo, 

Em vez de feliz me vejo sofrendo, 

Correndo, Chorando, 

Mas nunca deixando 

De amar e sofrer.

08.06.73

Eu, no espelho. 

Sempre refletindo, nunca vendo. 

Preso a imagem comum de todos os tempos. 

Com a mente tão forte, um pouco demente. 

A aparência tão bela, 

Perdido em trevas 

Que são formas comuns 

Do meu pensamento. 

 

Eu, no espelho. 

Uma canção alegre, um pesadelo. 

Um abismo esquecido de flores tão belas, 

A espera da vida, da paz e da guerra, 

Num sonho feliz, 

Sem idade, nem eras. 

 

Eu, um espelho. 

Irrefletivel, já cansado, 

Com os olhos atentos à luz do momento. 

Eu, no espelho 

Com muito medo, 

Eu que queria ser deus,

Que toda luz se acabe 

E eu deixe de ser espelho 

03.75

Vem: 

 

Vem que eu quero te mostrar o mundo. 

O infinito não tarda, 

A morte espera, 

E a vida é bela, bela demais. 

 

Vem! 

Vem porque o universo é frágil 

Quando o espirito se liberta 

E a gente se entristece 

Se não há tempo para sonhar. 

 

Vem: 

Cante uma cantiga bem suave, 

Muito Brilho sobre os olhos, 

Que eu já começo a sonhar.

 

Vem! Vem porque eu te amo. 

21.05.75

Um grito suprimido vem de longe. 

Outros, tão aflitos, 

No presente, são ouvidos. 

Entre eles, 

Anos de existência sem sentido. 

Com as vidas perdidas, 

A consciência se agita, o coração bate forte, Rasga o peito, explode, e diz não! 

Não a opressão, 

 

Liberdade, ainda que tardia! 

Liberdade, palavra que não se fala, se usa. Palavra que não é matéria pura. 

E matéria composta 

De cultura, Terra para todos, Direitos, Cidadania, Saúde, Educação, Nacionalismo, Soberania, 

E não se combina com nenhuma ditadura. 

 

Liberdade: 

Muitos gritos foram dados. 

Todos eles sufocados. 

Mas ainda são ouvidos. 

Ainda temos ouvidos! 

Nossas mãos, nossas cabeças 

Que pedem 

Que a liberdade se exerça 

Independente de cor, raça e crença.

14.06.75

Para os que vencem, 

Para os que mereciam vencer: 

Não deixem que meu irmão 

Na contemplação dos dias que passaram 

Se encha de tristeza, 

Pela adversidade do dia de amanhã. 

 

Para os vencidos, 

Para os que venceram! 

Para aqueles que abraçaram uma crença sem acreditar no futuro, 

Ou que acreditaram, mas não sofreram, 

Pela fé que caminha sobre a dúvida, 

Pela vida que renasce com os sonhos 

Não deixem que a depressão contagie as flores, Radiantes da primavera. 

Que a solidariedade sobreviva nas trevas 

E nos de frutos para sobreviver no inverno. 

 

Para os que venceram, 

Pelos que foram vencidos! 

Não deixem 

Pela maturidade adquirida com o tempo, 

Pela compreensão conquistada nos caminhos, Que a verdade se perca, 

Que a paz termine. 

11.75

Como é bom olhar o mundo mais longe: Desprovido de cercas e assim de porteiras. 

Um mundo onde a luz não encontra barreiras: 

E assim tudo é luz. 

Onde a vida emerge a cada canto, 

Sem a presença dos deuses, 

Escravos e oprimidos. 

 

Um mundo de liberdade de pensamentos. 

Um mundo de sonhos, 

De novos valores, 

De novos desejos. 

Um mundo onde a vida não morre 

Porque nunca renasce, 

Ou se existisse seria Deus. 

Um mundo de contemplação!

 

Eu e Deus somos a causa 

De nossa mútua existência 

E a partir desse instante uma causa pacifica, Serena 

Uma causa que não se apoia na crença,

Nem na razão, 

Mas em minha existência.

03.77

Ontem à tarde, 

Em frente ao mercado, 

Eu, subitamente, 

Fui assassinado por uma criança. 

A arma era de brinquedo, 

Mas a sensação foi a mesma 

Que estar morrendo. 

 

As crianças de hoje, às vezes, 

Mais me parecem com gente grande. 

Mas nós, homens, 

Nunca nos incomodamos 

Que as crianças se transformem 

Em brinquedos do futuro, 

Crianças 

Que nascem e morrem, 

Sem jamais se aperceberem 

Que nunca foram crianças, 

Nem homens, 

Foram simples bonecos 

Vendidos a preço baixo 

No box de um mercado.

10.02.82

De trás pra frente é que se anda, 

Mas de frente pra trás é que se encontra 

O homem. 

Onde ele anda? 

A esquerda ou à direita? 

O centro não conta.

 

Na direita há uma bomba 

E na esquerda há um pavio 

Que a gente acende quando pensa 

E que só apaga quando deita, 

Quando morre, 

Quando aceita, 

Seguir atrás, olhando a direita: 

Secando a foz, roubando a vida,

Calando a voz, furando a fila.

 

Um homem pode ter muitas faces, 

Menos aquela que traz escondida. 

Esta pertence a história 

E um dia há de ser conhecida, 

Há de ser exaltada, 

Há de ser esquecida. 

Quem sabe? 

ELEIÇÕES 82

Vote agora,

O futuro se vê depois!

Será que o país afirma

Será que o país confirma

O que disse Charles De Gaulle?  

 

 

Faça apara a sua opção.

Escolha o voto do seu coração:

Voto útil,

Voto distrital, 

Voto de cabresto, 

Voto regional, 

Voto no homem,

Voto camarão,

Voto do partido, 

Voto do etc. e tal.

 

 

 

Quem é do PDS de partido não carece 

Pois a sigla não escreve 

No santinho do eleitor.

 

O PTB não dá pra entender 

Se é do Jânio ou da Ivete,

Na verdade é um pivete 

Com mania de poder.

 

O PMDB é isso que a gente vê:

Não cheira, nem fede, 

Não ganha, nem perde, 

Se bobeia ele cresce 

E vira um grande PDS. 

 

 

PT, meu coração está com você. 

Mas o senso não me deixa crer 

Que você ainda vira a mesa 

Sem da força não beber! 

Teu radicalismo ingênuo, 

Tua mensagem serena, 

Inda, vão virar bandeira 

Noutro ciclo de opressão.

 

 

No PDT. Tudo pode acontecer: 

Desde a volta ao caudilho, 

A mudança do regime, 

Até um novo PTB. 

 

 

Eleitor 

Faça a sua opção. 

Só depende de você. 

Como no Brasil 

Votar é obrigado por lei 

Vote nem que seja no Pelé. 

24.09.83

Nesse jogo tenho sido poeta de meio tempo, 

Meio verso, meio sem jeito. 

Gostaria de ser poeta por inteiro, 

Poeta da vida, 

Do branco até o preto. 

Poeta maníaco, 

Maneta só no receio, 

Do lápis atento, 

Do verso ferino, 

O anjo ao avesso! 

Fazer poesia do demônio do povo, 

Poesia de quem já no meio da vida 

Não vê uma saída, 

Não sabe de glórias, 

Só sabe do pobre, do doente e do feio. 

 

Gostaria de ser poeta dos anos 20, 

Poeta de peito cheio, 

Poeta da fantasia, do amor, da alegria. 

Mas, antes de tudo, poeta mesmo! 

Poeta de boca suja, torta, 

De vento em popa, 

Do lado esquerdo. 

Poema padrão porcaria, 

Poeta de romaria, 

Daquelas que vem de longe, lá do fim do mundo, E perturbam a serenidade do Santo Sepulcro. 

19.11.84

Companheira! 

Te conheci menina, 

Me conhecestes menino, 

Nos demos as mãos, 

Nos amamos, 

Tivemos filhos. 

 

 

Hoje procuro entender 

Esta necessidade que todos temos 

De nos iludir, nos enganar. 

Necessidade que a consciência reprime 

Por nos sabermos iguais: 

Todos nós a nos merecer, 

A nos trair, a nos dividir. 

A nos proteger de outros iguais: 

Que se arrebentam de ansiedades,

Que se embebedam de vaidades 

E não respondem ao apelo da razão! 

Muitos já estendidos pelo chão! 

Muitos destinos, 

Muitos caminhos, 

A nos confundir, 

A nos arruinar, 

A nos avisar, 

Conosco não: 

 

 

 

Companheira! 

Te percebi matreira, 

Me recebestes sorrindo, 

Nos deitamos na cama, 

Nos mentimos. 

Aumentamos os nossos conflitos. 

Traímos os nossos princípios. 

A consciência a nos avisar: 

Não, não, nossos filhos! 

 

Não é por eles apenas: 

E pelo nosso convívio, 

É pela nossa cabeça, 

E pelo nosso amor antigo. 

Um amor que nos mantêm unidos, 

Que perdoa os erros, 

Que quase nunca esquecemos, 

Que intensamente sentimos, 

Que nos reabre a vida 

Que nos obriga seguir: 

Companheiros.

11.03.77

Tudo o que temos? 

Tudo o que vivemos. 

Quando o meu mundo perecer, 

Eu ainda seguirei a minha vida, 

Vivendo apenas 

No universo dos teus olhos. 

 

O meu povo se arrasta pelas ruas. 

A verdade de tudo: 

O povo está mudo, 

Mas nunca estará morto. 

O povo nas ruas, 

A verdade dos corredores.

 

Quando não houver nenhum caminho 

Eu ainda me arrastarei com o povo, 

Percorrendo estradas de espinhos, 

Deixando nas estradas 

O sangue dos nossos sonhos. 

E se com o tempo 

Eu for consumido pelo jogo 

Eu ressurgirei um dia, 

Como a terra, que se transforma em poeira 

E é levada pelo vento. 

Renascerei no vento que revolve teus cabelos 

E terei conquistado um universo sem defeitos 

 

Meu mundo é você, Helena. 

05.81

Estou angustiado, 

Alheio, 

Ensimesmado. 

Não posso gritar, 

Não devo correr, 

Não há que chorar. 

Vejo um grupo de amigos 

Que papo antigo, 

Não dá pra encarar. 

Não posso mudar. 

Não dá pra engolir 

O copo de Bhrama, 

Se alguém que me ama 

Está muito mal, 

Está muito só. 

Estou cheio de dó 

E não posso voltar, 

Não posso sumir, 

Não posso alterar, 

Esta vida, 

Esta dor. 

Esta ferida 

Só pode arruinar, 

Só pode ferir, 

Só pode matar.

06.82

Menino esquecido, 

Menino sumido. 

Sem nome, só apelido: 

Zé, Lemão ou Pelezinho. 

 

Menino matreiro, 

Menino sozinho, 

Que a vida tão cedo 

Mostrou-se ao avesso 

Das histórias que você, 

Menino assustado, 

Menino calado, 

Nunca poderá viver. 

 

Corre menino que a vida tem preço, 

Não tem final mas tem começo, 

E é imenso este teu penar. 

 

Menino rei, 

Menino forte, 

Menino sem lei, 

Que ainda pequeno carrega no peito 

Uma chaga, um defeito: 

Quem nasce bastardo 

Tem sede de mais. 

 

Cresce menino 

Vai um pouco mais além 

Da tua mãe lavadeira e teu irmão na FEBEM. 

Foge menino, 

Foge também dessa herança maldita 

Desse pão bolorado, 

Dessa vida espremida 

Dessa estranha avenida 

Que leva o menino homem 

Ao homem ninguém. 

82

Há muito de alegria 

E pouco de tristeza em cada olhar: 

Uma alegria forjada 

No dente da máquina 

Que alimenta a fábrica, 

Que se consome no leito, 

No leito sem carne, 

Produto da fome 

Mais fome no peito 

Que fome de amar! 

 

 

Há muito de tristeza 

E pouco de alegria em cada olhar: 

Uma tristeza plantada 

Do norte até o sul. 

Nas mãos que cultivam a terra 

Que da imensa safra só colhem miséria,

Que não sabem o nome do dono da terra. 

Patrão invisível, além destas terras, 

Destes rios, deste mar. 

 

 

Há muito de tristeza 

Há pouco de alegria em cada olhar: 

No campo e na cidade há suor, sangue e fantasia. Há uma revolta contida, calada, espremida. 

Mas ainda há esperança! 

 

Uma esperança muda: 

Ninguém se fala, 

Ninguém escuta. 

Uma esperança que nos anima, 

Que nos empurra, 

Que nos ensina, 

Que a dor é surda 

E só convém a quem domina.

02.12.86

Quero ser flor que não se cheira, 

Pneu careca de rodar, 

Sem eira, nem beira, 

Sem saber onde parar. 

 

 

 

Quero o meu verso 

Como quero a mulher do artista, 

Se ela existe e me causa tesão! 

Se for fria, não quero não: 

Mudo de cama, 

Prefiro a Santa, na casa da Tia, 

Onde há bebida e muito batom. 

 

 

 

Quero eleger um presidente, 

Se ele for paciente e de bom coração. 

Se tiver um fascista 

Arrebento-lhe a crista 

Com um verso anarquista 

De alto e bom som: 

DIRETAS JÁ! 

 

 

Quero viver a vida, 

Mesmo onde ela escasseia, 

E recitar os meus versos 

Onde o silêncio permeia. 

Êpa: acho que plagiei um verso?   

Não faz mal plágio também cabe neste poema, 

O que não cabe é mentira, 

Insensibilidade, 

Besteira! 

 

 

 

Quero o meu verso 

Como água de lavadeira 

Lavando a alma do povo, 

Como se lava roupa de rico, 

E se atira fora a sujeira. 

 

 

Quero ser poeta. 

Quero fazer poemas. 

Mesmo que a rima falte. 

Mesmo que o livro não venha. 

07.03.86

Estive lá e nada pude fazer. 

Só pude ver, presenciar.

O massacre viril pelas forças armadas,

Decepando cabeças, 

Derrubando bandeiras 

Há muito acalentadas.

E nada pude fazer!

Só pude ler, mentalizar... 

 

Estive lá e não pude me conter, 

Só pude crer, repudiar:

O domínio voraz pelas U.S. Stars.

El Salvador, Granada,

Haiti e Nicarágua.

E nada pude fazer!

Só escrever, denunciar. 

 

Envelheci. 

Quero voltar atrás. 

O destino está lá, 

O sangue é um só, 

A terra, de todos nós. 

Retornemos às origens, 

Resgatemos as raízes, 

Nosso lema é vencer. 

Nada temer, ressuscitar.

13.08.86

Ontem à noite brigamos. 

Ninguém tinha razão. 

Brigamos porque ainda sou aquele 

Que não muda pra te agradar, 

Que não cede a um capricho teu, 

Quando te finges menina 

Para me conquistar. 

 

Brigamos. 

Apesar de que teu defeito é a minha virtude, 

E minha virtude é não brigar! 

 

Hoje não vamos brigar. 

Ninguém tinha razão. 

Brigamos porque ainda és aquela 

Que no meu mundo não sabe entrar, 

Que não atende a um apelo meu, 

Quando me escondo menino 

Querendo te perdoar. 

 

Brigamos. 

Apesar de que meu defeito é a tua virtude. 

E tua virtude é reconciliar!

86

Amanhã! 

Que palavra mágica: 

Amanhã, 

Poderei ser ou não ser, 

Poderão explodir mil bombas 

Ou milhões de risadas. 

Amanhã! 

Pode ser tudo, ou apenas uma piada. 

Nesses dias em que a incerteza do amanhã 

Chama as pessoas 

Ao individualismo da sobrevivência,

A irreverências mal disfarçadas, 

Me lembro de John Merrick, 

Homem elefante, 

Feio, ferido por tantos, 

John foi assim monstro, 

Bicho homem, homem elefante. 

Como será que inda criança, 

Apesar da rejeição extrema, sobreviveu? 

Em meio a sofrimento, 

Misérias e degradação, 

No circo da humanidade, 

Onde todos representam 

John não pode escolher 

Nem cenário, nem papel 

Mas sobreviveu até a noite 

Que escolheu para morrer e morreu. 

 

 

Perdoa-nos John: 

Nossos erros e nossa redenção 

Cada dia, mais que antes, 

Vem do nosso coração. 

 

Tal qual fizemos a você 

Fazemos hoje a milhões 

Pois das muitas que são nossas doenças: 

AIDS, CANCER, INFLAÇÃO, 

O virus que nos assola 

E o da incompreensão. 

Nesses dias de humano-deficiências 

Vale mais a proteção dos seus pares 

Que salvar uma vida mal sã. 

 

John! 

Se ainda, hoje, aqui estivesses 

Estranharias, ainda mais, 

A rejeição aos menores abandonados, 

Aos portadores da AIDS,

Aos miseráveis robôs humanoides, 

Aos excepcionais desamparados. 

 

John os nossos olhos 

Mal acostumados ao bonito, 

Cheios de estrelas, heróis televisivos,

Turismo, estilização, out doors 

E planos de benefícios 

Conservam-se ainda vendados,

Alheios à multiplicação do feio, 

Apesar da poluição dos rios, 

Da contaminação dos ares, 

Da criminalidade civil, 

Da proliferação selvagem 

Das Ogivas nucleares 

Em meio a grandes populações. 

Vivemos um mundo hostil 

Onde censura e razão 

Convivem em toda parte. 

Porém, John, queiram ou não 

Vivemos sob o domínio do tempo, 

Sob o domínio do medo, 

De sermos amanhã 

Mais uma página rota 

De amargo e triste sabor. 

Vivemos o inconfessável desejo; 

Sob o impulso do senso, 

De termos amanhã 

Uma vida prospera 

De saúde, paz e amor. 

03.12.86

Bom amigo Tamoio 

Sempre leio tuas cartas 

Uma, duas, três, 

Tantas vezes, 

Até que os olhos distantes 

Procuram por onde a mente vagueia. 

Neste ponto 

Decorei tuas palavras 

E procuro ver o que elas calam, 

Dentro do peito do amigo e irmão, 

Aquilo que não foi escrito 

Mas que as palavras exalam. 

 

Uma carta sua 

Para mim sempre é felicidade. 

Anseio suas respostas, 

Elas me fazem bem 

Independente da hora. 

Poucas foram nossas cartas, 

Muitas mais serão agora.

 

Comovido, neste instante, 

Sinto a presença do amigo 

Em todas as suas nuances. 

Peço ver em meus versos 

O Lampião de sempre, 

Apesar de que o lápis esconde 

Tudo o que a face aflora. 

Sinto saudade 

E então me lembro da sua frase:

Lembrança puxa realidade! 

Me encho de vaidade, 

Pelo amigo que tenho, 

Abro a gaveta e leio, 

De novo, 

Tua última carta. 

No mar da ansiedade 

Meu coração se perdeu, 

Sem rumo, 

No leme impera Orfeu. 

Fechei os olhos 

E abri a janela do mundo 

Interior meu que não tem censura, 

Onde meu corpo arde e não quer ceder, 

Só se acalma no cio, 

Mas do cio sempre explode outra vez. 

Parece um orgasmo louco 

Onde corpos entrelaçados se beijam, 

Sem angustias se desejam, 

Transpondo as fronteiras sociais 

Do ser convencional cujas regras 

Não me deixam ser eu! 

 

 

Re-a-li-da-de! Sou: 

Quando fecho os olhos 

E me vejo adultero, 

Obcecado, obsceno, 

Machucado, amordaçado 

Pelos algozes do mundo exterior 

Cujas filosofias concretas 

Confundem a minha razão de ser.

 

Eles dizem que o mundo 

Tem que ser organizado, 

Que a vida é uma repetição, 

Que devemos ser cordatos. 

Cada par tem duas caras 

Metades que se juntam 

Num conjunto harmonizado 

Cujos frutos santificam 

O que em princípio é pecado. 

 

 

Meu amigo duvide disso tudo,

Desse bolo encomendado 

Pois ser avesso a introspecções 

É ser escravo da ordem, 

É viver cagando regras, 

É parir e não foder, 

É ser mais um na multidão. 

 

 

Conte tudo, conte comigo 

Pois censurar o seu íntimo 

No mínimo é um vício 

Que nos fizeram querer. 

Eu sei ORFEU é um perigo 

Que devemos evitar! 

Porém, 

ORFEU também é música, transformação, Sabedoria e paz 

E não há sangria mais sublime 

Que afundar-se no abismo, 

Queimar-se no inferno do nosso instinto 

Estimular o libido 

Despir-se dos preconceitos 

E conhecer-se um pouco mais! 

25.05.87

Sol e chuva, entardecer 

Me lembram dias felizes 

No jardim público, 

Na matriz, 

Entre as ruas 5, 4 e 3.

 

Nesse tempo fui menino. 

Desses descalços, 

De pés sujos de suor e poeira, 

Que andam pelas ruas, 

Que a gente vê mas finge não ver.

Porque o menino tem fome e sede 

De ser igual ao menino rico, 

Bonito, de tênis, bicicleta e abrigo

Pelo jardim público, a correr.

 

Mas o menino vaga, sem rumo, 

A tarde inteira sem saber, 

Tudo o que sabemos 

Mas não se pode dizer: 

Menino descalço, 

Calção de saco 

De farinha do armazém, 

Que de manhã vai a escola 

E de tarde vem correr 

Atrás do menino rico 

Que nunca poderás ser!

 

 

Por seres menino 

Não podes compreender.

Que no mundo há ricos 

Que só precisam nascer! 

 

Naquele tempo eu não podia entender

O que hoje entendo 

Mas não consigo vencer: 

O ufanismo profano, do progresso 

Que alimenta os sonhos 

Da classe média, 

Cuja última forma nos resta ser. 

Que nos obriga a pensar em nós 

Depois nessa gente pequena. 

 

 

Gente que destrói nossos clichês. 

Que nos desnuda.... 

Com sua aparência singela 

Para quem a felicidade 

Está muito aquém da riqueza. 

Cuja ingenuidade sincera 

Do mundo espera 

Um pouco menos de insensatez, 

De injustiça, de carências e, 

Através da sua existência, 

Sendo o fruto inviável 

Do sistema que acorrenta, 

Que governa nossas vidas, 

Nos limita fronteiras 

Nos seduz com suas prendas. 

Nos corrompe, nos põe vendas 

E nos reduz ao que somos: 

Escravos das aparências. 

Nos remete ao que fomos ontem, 

Meninos ricos ou pobres, 

Não faz diferença, 

Não somos mais crianças, 

Perdemos o estilo 

Que todo menino tem 

Correndo, pulando 

Chutando latas pelas ruas 

Transpondo as regras do jogo 

Que todo adulto, penando 

Tem que obedecer. 

28.05.87  IV

Revoltados, da fábrica, 

Todos foram ao sindicato 

João surpreso, ganhou no ato 

Uma nova promoção: 

De oprimido do sistema 

Passou a companheiro e trabalhador. 

O líder companheiro 

Mostrou-lhe os seus direitos, 

Coisa que na fábrica nunca se falava. 

E João sentiu-se, então, 

Seguro e senhor daquela situação. 

A questão foi levada a assembleia 

Onde choveram ideias 

E prováveis soluções. 

O problema representa, 

Disse o líder companheiro, 

Uma face bem pequena,

De um monstro, além fronteira, 

Que assola a nação. 

Esse monstro não tem pena. 

Ele sempre se alimenta 

Com a nossa opressão. 

Arrocho salarial, inflação; 

Desemprego, corrupção; 

Carestia, instabilidade profissional; 

Falta de moradia e todo tipo de mal; 

São faces que se irradiam 

Do imperialismo internacional. 

O trabalhador não teve participação nisso tudo, Ninguém pediu a sua opinião, 

Por isso não é justo 

Arcarmos com esse custo 

Na hora da recessão! 

Nossa força está na nossa união.

Por isso proponho agora 

Uma carta a empresa 

Exigindo sem demora 

Reintegração dos dispensados, 

Aumento de salário, 

Redução da jornada de trabalho, 

Estabilidade por um ano 

E piso salarial mais alto.... 

Conforme determina 

A Organização Internacional do Trabalho. 

Se isso nos for negado 

Já estamos preparados, 

Vamos ā greve geral e irrestrita 

Até que sejam atendidas 

As nossas reivindicações.

 

Então João voltou para casa, 

Feliz e desempregado, 

Tanto tinha trabalhado, 

Nem sequer olhava ao lado, 

Não conhecia o reverso da questão. 

Até que não era ruim, 

Desempregado sim, 

Desamparado não! 

Tinha os seus direitos 

E também tinha convicção 

Da solidariedade da classe 

Lutando por um irmão. 

Melhor assim, rebaixar-se não! 

 

Isto tudo disse a mulher, 

De porre, de madrugada, 

Quando em casa chegou. 

A mulher olhou para o quarto, 

Viu os filhos aconchegados 

Um ao outro, dois por cama, 

Três ao todo, velhas aos frangalhos. 

Cobertores todos trapos, 

Havaianas pelo chão 

De cimento queimado 

E um pouco de vermelhão. 

Teve vontade de chorar, 

Em nada acreditou! 

Aos poucos foi se contendo, 

Na cozinha remexendo, 

Arroz, farinha e feijão. 

Até que o gás com preguiça, 

De súbito, acabou. 

A mulher soltou um grito 

Mas lembrou-se que o marido 

Ao chegar lhe havia dito: 

Não preciso desse lixo, 

Amanhã não vou trabalhar! 

Juntou-se a ele na cama 

Que já havia dormido 

Mas num sonho muito aflito 

Nervoso balbuciava 

Maldito, maldito, maldito..... 

28.05.87  IX

Emocionado, 

João perdeu a fala. 

E neste instante comovente, 

Aproveitando a parada, 

Um deputado ali presente, 

Começou em tom solene, 

A sua intervenção: 

Companheiros e companheiras!

Todos sabem certamente 

Que o nosso partido 

Foi sempre de oposição. 

Não sou de fazer promessas, 

Mas, por favor me cobrem esta 

Na próxima eleição! 

Se preciso for, irei ao presidente 

Defender este inocente, 

O nosso querido João. 

Não quero fazer demagogia, 

Mas onde está aquela magia 

De acabar com a inflação! 

Disseram…

Que não iria faltar comida na panela do pobre. 

Que a dívida externa….

Não seria paga com a nossa fome. 

Mas,....na verdade: 

O que eles fazem tem nome: 

Entreguismo, corrupção e servilismo, 

E tirar da boca do pobre 

E botar na boca do rico. 

Por isso conto contigo na próxima eleição. 

Vote em mim, 

Vote no meu partido, 

Juntos construiremos o futuro da nação!

 

Depois de muitos aplausos, 

Devido a questão de ordem, 

Também falou bem alto, 

O presidente da federação, 

Que de forma bem tranquila,

Colocou logo em seguida,

Vários tipos de ações: 

Uma comissão de organização do movimento, Outra comissão de comunicação dos procedimentos,

Outra comissão de fabricação de faixas e panfletos,

Outra comissão de centralização das informações, A comissão de preparação do dia nacional de luta

E a comissão do etc. e tal. 

28.05.87  XI

Jā era amanhecer. 

João perambulava. 

E, sem saber, chegou a fábrica. 

Cerrados de orvalho e lágrimas, 

Seus olhos marejados, 

Sem querer observaram, 

As pessoas apressadas, 

Que aos grupos na calçada, 

Caminhavam para a entrada, 

Fazendo tremer o chão. 

Com vergonha, 

Afastou-se pensativo. 

Não, sem antes, ter ouvido, 

Os cochichos dos colegas da seção. 

Voltar pra casa não queria, 

Mas também não entendia 

Os presságios da mulher: 

Larga disso João, 

Você ainda se dá mal, 

Estou até adivinhando, 

Todo mundo trabalhando 

E você pedindo esmola! 

Tu não pensa nos teus filhos,

Senão não tava de cacho 

Com esse tal de sindicato. 

Seria esse o seu destino? 

Chegou até duvidar de si próprio,

Ao olhar o envelope 

Da sua demissão. 

Ainda ruminava 

A decisão da assembleia 

Onde o líder companheiro 

Repetia o tempo inteiro: 

O desgaste do movimento 

Já dá sinais evidentes 

Que é muito mais prudente o fim da paralização. Fizeram, então, um balanço: 

Somaram os prós, 

Subtraíram os contras. 

Saíram vitoriosos, 

João, isolado, 

Ficou do lado, 

E por questão de ordem 

A mesa não concedera 

A sua intervenção. 

Os votos foram contados. 

O movimento encerrado. 

Adeus! Reintegração. 

08.10.86

Onde está o homem que vai nos guiar? 

Vemos a nossa frente uma nuvem de suspeitos Que nos encaram, face a face. 

Através da fantasia de um tubo de imagem 

Nos falam dos nossos direitos, 

Querem reformar o mundo, 

E são pródigos em fazer estórias da verdade. 

Falam tanto que muita gente já não sabe 

Se o que vemos é ficção, mentira ou realidade. 

 

 

O homem que temos é distante. 

Não podemos lhe beijar a face. 

Somos impedidos 

Pela redoma do tubo de imagem. 

Mas ele nos beija, até com lágrimas 

E nos vende por tantos pontos na pesquisa de popularidade 

Para depois nos entregar ao calvário da realidade... 

 

 

O homem que vimos ontem! 

Onde está? 

Aquele que vimos altivo a denunciar 

A ganância, o abuso e a injustiça de outros mais. Aquele homem que vimos ontem, 

Hoje não vemos mais. 

Estará outro a ocupar o seu lugar? 

Ou, quem sabe, ele mesmo aí está: 

Esguio, ladino a cooperar 

Com todos aqueles que nos querem roubar o salário, a liberdade e a comida, 

A perspectiva de uma nova vida 

Sem violências, angustias e epidemias. 

 

 

O homem que vai nos guiar amanhã 

Está encarcerado numa prisão particular. 

Uma prisão escola a prova de utopia 

E dos abalos da energia nuclear. 

Em nome da segurança e do avanço da tecnologia 

Nessa escola, 

Nossas crianças aprendem todo dia 

Que não vale a pena buscar 

Este ser maravilhoso 

Que existe dentro de cada um de nós. 

11.11.86

No bar, noite adentro, 

Não havia um que não parasse 

Para ver a menina do passeio. 

Que entre mesas e acenos, 

Sorrindo, caminha ao banheiro. 

Para quem ela sorria? 

Cada um sentiu-se correspondido.

Ela retorna direto à sua mesa. 

Ninguém foi preferido, 

Sorriso não é consentimento!

 

Vou-me embora atrasado, 

Nada há por mais que queira. 

Abro a porta do carro, 

E quem vejo? 

Sorrindo, na calçada, a menina do passeio! 

 

Abro a porta do meu coração, 

Conto a ela meus anseios. 

Ela entra em minha vida 

E descobre os meus segredos! 

Já não sou senhor de si. 

Ela me faz carinho, 

Me revira com seu jeito! 

Meu ego está pelo chão. 

Ela diz que vai embora. 

Não quero que ela vá 

Mas tenho medo, 

Medo dessa louca situação!

 

 

Menina de programa 

Abri a porta do carro 

E entrastes em minha vida, 

Meus princípios profanastes. 

No bar, noite adentro,

Não havia um que não te desejasse 

Mas quando te vi na cama, 

Não foi a menina que vi, 

Foi a mulher, minha mãe e minha esposa, 

Estavas nua, linda, 

Mas não te amei pelo teu corpo, 

Atrás da pintura do teu rosto 

Pude ver que estávamos ali 

Porque somos a um tempo,

Cada um com seus defeitos, 

Homem e mulher, 

Conflitos e consenso. 

 

 

Menina de .... 

Já não uso adjetivos,

Não tenho esse direito. 

Para que mascarar a realidade da vida? 

Tantas mães, tantas meninas,

Mulheres que vão as fábricas todos os dias, 

Que lutam pela vida e contra essa rotina maldita.

Invejo com que alegria vocês batalham,

Como cuidam das suas crianças,

Como as levam as creches, 

Aos hospitais, as escolas, 

Ao ex-marido, as sogras: 

 

 

 

Ex-menina, ex-esposa, 

Mulher operária, 

Menina de talento,

Que para sobreviver neste novo mundo

É preciso algumas vezes,

No bar, sexta-feira, noite a dentro, 

Transformar-se em menina de..... 

 

No meio da vida,

Vida afora sem conserto,

Mundo moderno, 

Velhos conceitos. 

Velhos, 

Velhos, 

Pré-conceitos 

11.05.37

Amor marginalizado 

Afinal o que há de errado? 

Se vens de encontro 

Aos desencontros 

Da instituição do amor. 

Amor que nos desespera 

Nos remete as trevas 

E nos causa dor. 

 

Amor, errado amor! 

O que há de errado? 

Se tu vens pintado 

Da dor do pecado 

De infeliz pintor. 

Se és proibido, agredido, 

És revolucionário 

E todo marcado de loucuras mil. 

Não trazes promessas contigo 

E não tem sentido 

Não lhe dar vazão. 

Se tu nasces torto 

Mas trazes conforto 

De um sincero amor. 

Se tu nasces quando 

Dois amantes loucos 

Se entregam tanto 

Que não vêm dor. 

 

 

Afinal o que há de errado 

Se, como dizem, 

O amor não escolhe meio, 

Floresce de qualquer jeito, 

Mesmo não se querendo. 

Ele bate à porta primeiro, 

Depois avisa do sofrimento, 

Tem a poesia a seu dispor 

E do poeta 

Faz seu primeiro detento. 

 

Ah! Mentiras! 

Não é certo 

O que andam dizendo. 

Afinal, tudo está errado!

Até pensar ē censurável. 

Todo mundo tem pecados 

Que não pode confessar. 

 

Eu, réu, pecador confesso: 

Que se fosse dado 

Ao meu amor seguir teus passos, 

Eu te seguiria sim, 

Sedento até o fim 

Me atirava em seus braços 

E entregava tudo de mim. 

28.05.87  I

A fábrica 

Nos horários de entrada e saída 

Era um grande formigueiro. 

João ficou satisfeito 

Por ter, ali, conseguido um empregão. 

Eufórico já queria estar lá dentro 

Para mostrar do que era capaz. 

No início, teve problemas 

Ao tentar mudar o esquema 

E provar que era pequena 

A produção de cada dia, na seção. 

Noutro esquema, 

Muito mais produziria, 

Mas o encarregado, furioso,

Insistia em manter a disciplina, 

Chamando-o de metido e inventor. 

 

João, surpreso, 

Apesar do ritmo, que era lento, 

Não teve dificuldades. 

Adaptou-se em pouco tempo. 

28.05.87  II

Qual fábula da cigarra e da formiga 

A diretoria, na orgia, 

Contabilizava todo dia, 

O que entrava e o que saia 

E sempre mais se convencia 

Que o inverno nunca haveria de chegar. 

Então, um dia, de repente 

Surgiu do oriente 

Uma novidade no mercado produtor. 

Um produto descartável, 

Diferente de tudo, 

Que até então, conhecia o consumidor. 

Que em muito superava o seu antecessor. 

Depois que as vendas caíram 

Propuseram então ao CIP 

Um preço compensador, 

Subsídios nos insumos, 

E reserva de mercado 

Até corrigirem o rumo. 

O que o ministro negou!

28.05.87  III

III 

A fábrica, então, entrou em crise. 

Mas ái de quem proferisse 

A palavra recessão! 

Precisamos manter a calma, 

Tornou-se eterno refrão, 

Pulando de boca em boca, 

Entre uma e outra reunião. 

Até que finalmente 

Tomou-se uma decisão 

Da qual o presidente falou, 

O diretor concordou, 

O gerente encaminhou, 

O supervisor dinamizou, 

O encarregado impulsionou 

E o povão, pobre povão 

Não concordou, mas de má vontade, executou. 

 

E logo se viu que o plano furou. 

Então, o encarregado adoeceu, 

O supervisor se esquivou, 

O gerente apenas comunicou, 

O diretor ficou surpreso, 

E o presidente berrou! 

E logo marcou outra reunião, 

Da qual não participou, 

O diretor saiu mais cedo, 

E o gerente retornou com a nova ação 

Que o supervisor agilizou 

E o encarregado sacramentou: 

No pessoal uma redução. 

E o João, pobre João 

Foi culpado de tudo 

Estava muito mal 

E só restava, portanto, 

A baixa na carteira profissional. 

28.05.87  VI

 Como sempre 

A reunião não começou no horário, 

Pois não era necessário,

Ao fato muita atenção. 

Uma carta do sindicato, 

Desprovida de sentido, comentou o diretor. 

Pois o acordo foi firmado, 

Discutido e negociado 

Com cada trabalhador. 

Não abriremos mão do que diz a legislação!

Eles estão desesperados,

São problemas de mercado 

E depois, 

Com meu trabalho de gerenciamento de conflitos, Nossa administração está preparada.

Para mim está bem claro,

Ceder não vamos não! 

Dito e feito. 

O presidente concordou. 

Nem resposta, 

Desta vez, a eles dou! 

VII 

Vencido então o prazo o líder do sindicato 

Tenso comunicou: 

A greve já é um fato! 

Precisamos manter a calma, 

A polícia não vem não! 

Faremos o piquete 

No turno da madrugada. 

Com a fábrica parada, 

Puxa-saco não vem não. 

Se vier vai ter porrada, 

E amanhã tem passeata, 

Com faixas, batuque e rojão! 

 

João, de trabalhador, companheiro, 

Virou também piqueteiro! 

Trabalhou o dia inteiro 

Com muita dedicação. 

Enquanto o colega da seção,

Sem o nome no listão,

De casa foi ao brega,

Ao pesqueiro, ao futebol,

Sem muita preocupação. 

Afinal a fábrica estava tomada,

Não havia uma entrada 

Que não tinha confusão. 

A falta seria abonada, 

Não havia discussão 

O que quer que fosse feito,

Para ele era perfeito,

Só tinha compensação. 

28.05.87  VIII

Na segunda assembleia

Tinha sido boa ideia,

Um show de introdução: 

Tinha cantor de rock-balada, 

Sambista que estava em baixa, 

Uma dupla caipira falada,

E um grupo de teatro amador. 

Com a massa em ponto de bala 

O líder iniciou a fala.

Fez a leitura da pauta 

E uma breve avaliação 

Do movimento que entrava 

Em fase de ascensão: 

Tudo estava parado, 

Não havia uma só máquina 

Virando naquela manhã. 

Depois, 

Foram tantos que falaram, 

Que o João ficou chocado, 

Com tanta repetição. 

Tanto tinham falado 

Que ele havia decorado 

Os problemas da nação. 

Então num arremedo, 

Subiu ao palanque, sem medo, 

E fez sua intervenção: 

Olha aqui gente 

Nóis quer um salário decente, 

Melhor condição de vida, 

Saúde e habitação. 

Nóis quer escola pros filhos, 

Comida e diversão. 

Porque, com a vida que se leva, 

Pra comer não dá mais não! 

Eles têm de tudo: 

Carros, casa bonita, piscina 

E viagem pro exterior! 

O que eles não têm, 

É vergonha na cara, 

De acabar com essa farsa, 

De explorar trabalhador. 

28.05.87  X

Lock out, lista negra,

Suborno, demissão em massa, 

Propostas mais amenas 

Tais como anunciar 

Que o direito ao trabalho 

Estava assegurado por lei, 

Que a legalidade da greve 

Era fato inconteste, 

E que em caso de retorno imediato, 

Não seriam descontados,

Os dias de paralização. 

Tudo isso foi pesado,

Pelo presidente e o diretor. 

Depois somaram os fatos 

E perderam o entusiasmo 

Com novas revelações: 

Mais um dia assim parados, 

Os prejuízos acumulados 

Cobririam o necessário 

Pra todas as reivindicações! 

Ofereceram então um décimo 

Do que foi solicitado, 

Mas era fato consumado, 

Da dispensa não abrir mão! 

Na audiência de conciliação 

O juiz ouviu as partes 

E entre a ilegalidade da greve 

E inaplicabilidade da lei, 

Meditando na sentença, 

Preferiu o veredicto: 

Meio termo na verdade 

Concilia as duas partes, 

Este foi sempre o meu lema. 

O representante patronal, 

Como era habitual, 

Recorreu em outro tribunal. 

O representante do sindicato, 

Já estava preparado, 

Com tudo condicionado, 

A soberana assembleia. 

28.05.87  XII

Sua cabeça girava. 

Mesmo assim chegou em casa 

Depois do amanhecer. 

Rondava seu teto, 

João precisava de afeto, 

Mas não queria entrar. 

Era hora de as crianças irem pra escola. 

Homem não chora! 

E ele, logo agora, 

Não podia se controlar. 

Ficou assim parado, 

Escondido atrás do muro, 

Até que os mais grandes passaram 

E os pequenos, no terreiro 

Faziam grande barulho. 

Então, a mulher toda disposta, 

Lhe veio abrir a porta, 

Com a mesa ainda posta. 

Abraçou-lhe com ternura. 

A incrível criatura 

Com a voz ainda rouca disse: 

Corage home, entra

Vamos, toma um gole de café.

03.06.87

Contei os poemas da minha vida

E não deu em muitas páginas. 

Olho para traz 

E vejo que a vida foi passando, 

As páginas se amontoando, 

Tive tempo, 

E não deu sequer um livro. 

 

Viver não foi em vão. 

Escrever era preciso. 

Por isso, 

Confesso meu amigo, 

Estou de acordo contigo, 

Com a sua impressão. 

Seja ela qual for, 

Não vai me causar dor, 

Fica pré-estabelecido. 

 

Se é boa, 

Não foi à toa que me esforcei. 

Se é ruim não vejo assim, 

Paciência, e não ria de mim! 

Afinal, dos fatos da minha vida, 

Talvez a maior ferida 

Seja a falta de perspectiva 

Dos anos que aqui vão! 

 

Se escrevi mal, 

Pelo menos tentei, 

Nenhum verso atirei 

Sem que tivesse sentido 

Um fogo cá comigo, 

No íntimo do meu ser. 

Um medo amadurecido 

Da retaliação presumível 

Que pode ser, amanhã, 

Nosso mundo. 

 

Se escrevi bem, 

Não foi porque tentei, 

Foi porque aconteceu 

Naqueles momentos incríveis 

Em que a esperança supera tudo 

E, 

Mesmo tendo clareza 

Da minha real pobreza 

Ante o infinito mundo, 

Foi-me possível, 

Apesar de tudo, 

Sonhar o utópico amanhã, 

E sentir o impresumível, 

Possível, 

Apesar dos rumores, 

E dos infortúnios, 

Que nos querem dar. 

 

Este amanhã, 

Que nos parece impossível, 

Para mim é a causa de tudo. 

Por ele não vou ficar mudo, 

Mesmo que eu não agrade, 

E que você não queira concordar. 

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