
CRÔNICAS DA FAMÍLIA
Por Haroldo Lamps
O BAILE DOS 10 MAIS
Nasci e cresci em Araraquara. Aos 22 anos, quando fui aprovado no vestibular de engenharia mudei para São Carlos, onde morei no alojamento da Escola de Engenharia – EESC USP. Como muitos jovens na mesma condição, ao concluir a faculdade saí em busca de trabalho, e acabei mudando para Campinas, onde resido até hoje.
Sempre que possível, em finais de semana, volto para Araraquara para visitar a minha família. Numa dessas ocasiões, já estava na casa da minha mãe, na rua 10, com o “som caseiro” ligado na área do fundo, quando o interfone tocou: aqui é o Zé Neguinho, quero falar com o Haroldo. Corri para a frente da casa e lá estava ele, com aquele sorriso largo de sempre, radiante, tipo dentes de marfim, esbanjando simpatia. Nos abraçamos e a partir de então, nessa manhã rolou muita música e muito papo sobre a nossa juventude: as brincadeiras dançantes, os bailes com Os Bruxos, as brigas nas portarias dos clubes que tentavam proibir a entrada do Zé porque era negro, o Ginásio do Carmo, o Colégio da Vila, mas principalmente, falamos do Baile dos 10 Mais.
O Zé começou dizendo que a alguns dias atrás, havia encontrado com a Regina e que ela tinha confessado que ele fora o melhor, o mais elegante do Baile dos 10 Mais, mas porque estava de namoro com o Bianca, ela votou nele e que seu voto acabou influenciando os votos das outras meninas do júri, que formaram maioria e se decidiram pelo Bianca!
Como surgiu a ideia do Baile dos 10 Mais
Eu nasci e cresci no Bairro do Carmo, porem ao concluir o ginásio no “Vitão” não tinha alternativa ou ia para o Colégio da Vila ou para o IEBA, porque o Vitâo formava alunos somente até a oitava série do ginasial. Minha opção foi pelo Colegial na Vila, onde estudei no período noturno, encontrando amigos cujas amizades permanecem até hoje. Nós ficávamos sempre no fundo da sala de aula, razão pela qual, organizamos um grupo, com carteirinha e tudo mais, chamado “FUNDÃO KENT CLUB”. Faziam parte do FUNDÃO KENT CLUB o Felizatti, Grosso, Esquerdinha, Cebolão, Boralli, Ardeu, Otoniel e eu. Com a ajuda desses amigos, criamos a LOVE - Legião Organizadora da Vontade Estudantil e vencemos as eleições para o Centro Cívico do Colégio da Vila (durante a ditadura militar os Grêmios Estudantis foram extintos – em substituição foram criados os Centros Cívicos, os quais de acordo com as com as orientações do regime militar tinham que ser guiados pelo “CIVISMO”. Na época, em 1972 estávamos no auge da ditadura militar e não havia espaço para atuações políticas. A repressão era violenta e nossa missão era, principalmente, arrecadar fundos para o Centro Cívico que pudessem ser revertidos em auxílio ao colégio (compra de instrumentos musicais para a fanfarra, uniformes para os times da escola, etc.).
As fontes de renda das agremiações estudantis eram três: a taxa das carteirinhas, com as quais o estudante pagava “meia” no cinema, excursões, bailes e brincadeiras dançantes. Após a arrecadação das carteirinhas, que ocorria sempre no início do ano letivo, fizemos uma excursão a Santos na qual tivemos prejuízo. Pensamos então em fazer um baile, porem as chances de sucesso sempre eram duvidosas: dia chuvoso, outros eventos no mesmo dia ou até mesmo indiferença do público alvo. Foi quando a professora Maria Alice deu a ideia: um concurso de miss seguido de um baile. O Colégio da Vila estava cheio de meninas lindas e ela tinha uma amiga que tinha sido Miss Brasil e que poderia fazer parte do júri. Este evento foi feito no clube “Palmeirinha” e foi a maior bilheteria que já aconteceu na história da Vila Xavier. Colocamos lá, neste dia, em torno de 2.000 pessoas. Tinha gente dentro do salão, fora do salão e até na rua. Os Bruxos tocaram nesta noite e os apresentadores do concurso foram Ivan Roberto e a Cleonice Meireles.
Após este sucesso ficamos mais audaciosos. Juntando a isto nossa vontade de “transgredir” tivemos uma ideia: fazer um concurso de elegância masculina, também seguido de baile. Era bilheteria na certa, porem os obstáculos eram muitos! Começando pela procura de “pessoas” na cidade que tivessem a coragem de desfilar. Araraquara sempre foi uma cidade de valores ultraconservadores. Nós avaliamos isto e decidimos seguir com a empreita. Porém não tínhamos a menor ideia do que nos esperava. Nenhum clube da cidade alugou espaço para este evento. Disfarçadamente todos inventavam uma desculpa, mas no fundo não queriam se envolver com a ideia. Finalmente alugamos o salão de festas do Asilo de Mendicidade. Contratamos a banda Grupo 5 e, então começamos a divulgar o evento. Nesta altura, a diretora do Colégio da Vila, professora Davina, me chamou na Diretoria e foi taxativa: BAILE DE VIADO COM O NOME DO COLEGIO DA VILA NÃO VAI TER. ACABE COM ISTO JÁ! Fiquei revoltado com a atitude dela. Eu já tinha assinado os contratos com o empresário do Grupo 5 e com a administração do Asilo de Mendicidade, não dava mais para retroceder! Então criei coragem e respondi a ela na mesma altura: O CENTRO CÍVICO DO COLÉGIO DA VILA NÃO FAZ, MAS O FUNDÃO KENT FAZ! Com o apoio dos meus irmãos Assis, Benê, Zé Roberto e Ariovaldo mais os amigos do FUNDÃO KENT seguimos em frente e o evento foi realizado.
Os Preparativos para O BAILE DOS 10 MAIS
Fazer um baile implica em muitos preparativos, desde a impressão controlada dos ingressos que são vendidos na bilheteria no dia do evento, a obtenção de licenças junto a delegacia de polícia e a prefeitura, compra das bebidas que para servir durante o evento, divulgação do evento nos meios de comunicação da cidade, etc. Além disto, é necessário montar uma equipe para “operar o evento” desde cuidar da limpeza do salão de festas, equipe para servir as bebidas até as pessoas que cuidam do dinheiro arrecadado na bilheteria. Por fim, no caso deste evento, ainda era necessário arrumar uma passarela para o desfile dos 10 Mais Elegantes.
Ainda hoje, quando rememoro o que fizemos, fico emocionado porque é impossível acreditar que, um pequeno grupo de jovens entre 16 e 20 anos de idade, tenha produzido e conduzido um evento desta envergadura com tamanho sucesso!
Entre as enormes dificuldades que tivemos, creio que a maior de todas, numa época de extremismos, preconceitos e repressão, foi a de juntar 10 jovens que assumissem o desafio de desfilar sem nenhuma contrapartida financeira, motivados exclusivamente pela ideia de desafiar o conservadorismo e o preconceito de gênero. Nesta tarefa, o Bianca e o Zé nos ajudaram bastante. O Bianca era jogador de futebol, profissional da Ferroviária e ter assumido a participação no desfile deu um peso especial ao evento. O Zé, por outro lado, era uma pessoa muito especial. No Carmo todo mundo conhecia a Turma do Zé Neguinho, um grupo de jovens, homens e mulheres que se reuniam todos os finais de semana, em brincadeiras dançantes para curtir música POP, ROCK, BLUES e MPB. O Zé era uma referência no salão: dançava com espontaneidade e perfeição, não tinha pra ninguém! Além disto, sempre esbanjava simpatia. Quando ele topou participar do BAILE DOS 10 MAIS o evento se fortaleceu porque ele já era um personagem conhecido na cidade toda! Nós conseguimos então reunir todos os 10 participantes.
A noite dos 10 Mais
Não tenho certeza de quem foram os 10 personagens Mais Elegantes. Na minha memória foram o Zé Neguinho, Bianca, Mauro, Esquerdinha, Gilmar, Arlindo, Gê, Jorge, Micelli e um amigo do Zé. O Grupo 5 tocou nesta noite e os apresentadores do concurso também foram Ivan Roberto e a Cleonice Meireles. Todos arrancaram aplausos do público.
Como em todo concurso, aconteceu o desfile geral e na sequência desfilaram apenas os cinco mais elegantes. Nesta fase, tivemos o ponto alto da noite, um momento inesquecível: o Zé Neguinho combinou com alguém que tinha acesso aos disjuntores do salão, um apagão da iluminação geral exclusivamente no momento em que ele subisse na passarela. Durante estes momentos de escuridão ele repetidamente, acendia e apagava um isqueiro enquanto desfilava, aparecendo e desaparecendo na escuridão. A plateia ficou maravilhada com aquele efeito que destacava a calça de terbrin branco e, principalmente aquele sorriso, aquela ginga de sambista e aquele charme irresistível. Depois disto, para todos o vencedor se chamava ZÉ NEGUINHO.
Porém o júri decidiu que o troféu era do Bianca, ficando o Zé em segundo lugar.
Na realidade não tem importância quem ganhou e quem perdeu. Importante, mesmo, foi a participação de todos e a coragem que tivemos para desafiar o status quo da sociedade daquela época: extremamente conservadora e preconceituosa. De alguma forma algumas sementes foram plantadas naquele dia e com certeza produzem em todos nós frutos até hoje: AMIZADE, COMPANHEIRISMO e COMPROMETIMENTO!
Esta crônica foi feita em homenagem aos 10 Mais Elegantes. A todos, em especial ao Zé Neguinho, meu abraço fraternal.
Nome do Ze Neguinho.
Nascimento em XX XX 19XX.
Falecimento em XX XX 20XX
A CORREIA
Por Haroldo Lamps
Nos anos 60, em toda cidade do interior, o comercio fechava na hora do almoço. A jornada de trabalho era das 07:30 as 17:30, com um intervalo de uma hora e meia para o almoço. Este intervalo de hora e meia permitia aos trabalhadores almoçar em casa, junto com a família, das 11:0 as 12:30. Nos Sábados a jornada era de meio dia: das 07:30 as 12:00, completando assim, uma jornada de trabalho semanal de 48 horas.
Naquela época o trabalho era permitido já no início da adolescência. Assim, dos 13 aos 18 anos, ao lado do meu irmão Ariovaldo, o mais velho da nossa família de 9 irmãos, trabalhei numa concessionária de caminhões FNM – Fabrica Nacional de Motores. Na realidade a FNM fazia parte de uma política do governo militar de implantar e desenvolver fabricas de veículos automotores. No entanto a fabricação de caminhões FNM no Brasil, sob licença da Alfa Romeu, não obteve êxito. Não sei bem quais eram os problemas da tecnologia de fabricação destes caminhões, porém a FNM já estava em decadência. Me lembro que os motoristas reclamavam muito das correias e dos cabeçotes do motor. Os cabeçotes eram de alumínio, empenavam e vazavam óleo. As correias se desgastavam rapidamente e, assim, os caminhões “quebravam” com frequência.
Na pratica a concessionária AUTO MECÂNICA 7 DE SETEMBRO, para quem trabalhávamos, também não acreditava mais na FNM. Mantinha-se firme na região de Araraquara, trabalhando no mercado paralelo de manutenção e comercio de peças de caminhões Mercedes Benz, concorrente da FNM. Mas, para manter a concessão, sempre garantia os serviços de manutenção e o seu estoque de peças FNM.
Na década de 60 as empresas podiam contratar e registrar adolescentes com idade de, pelo menos, 14 anos. A divisão do trabalho funcionava com algumas regras bem simples: os funcionários mais novos, como eu, tinham que iniciar o turno fazendo a faxina: varrendo a loja, a calçada, limpando o balcão, etc. O tempo restante era usado para entrega de ferramentas aos mecânicos e fazendo o serviço de banco. Com o tempo, ao adquirir pratica de trabalho o funcionário passava ao atendimento dos clientes. Também podia abrir as caixas e checar as entregas dos fornecedores. Depois de anos de trabalho, já com a confiança do dono da loja, como no caso do meu irmão Ariovaldo, tinham liberdade para fazer pedidos e negociar descontos sem pedir autorização.
Me lembro que numa manhã de sol e muito calor, pouco antes das 11:00 horas, entrou na loja um camioneiro de sotaque diferente, talvez gaúcho ou paranaense, com uma correia de ventilação quebrada na mão. O camioneiro estava desesperado porque o seu caminhão FNM estava quebrado na rodovia Washington Luiz, no trevo do Quitandinha, próximo à entrada de Araraquara. Ele perguntou: Vocês têm na loja uma correia nova igual a esta. O Ariovaldo bateu o olho na correia, reconheceu o modelo, foi até o local onde as correias ficavam penduradas, pegou uma correia nova e entregou ao cliente. O camioneiro fez uma checagem, perguntou se era mesmo de FNM e, em seguida pediu o preço.
Neste momento, faço um breve parêntese sobre o sistema de controle que usávamos na época. Não tínhamos KARDEX (Sistema de Controle de Estoque), listas de controle e muito menos computadores. Usávamos umas fichas de controle que sempre acompanhavam as peças no local onde elas ficavam estocadas. Nas fichas, além dos dados de estoque, tínhamos o preço de custo e o de venda. Para que o cliente não tivesse noção da margem de lucro, usava-se um código que substituía os números por letras. Por exemplo a palavra PERNAMBUCO era muito usada e muito manjada de todo mundo. Traduzindo de uma forma simples a correspondência era feita assim:
No nosso caso, para que ninguém soubesse das nossas margens, o Salomão Haddad – o dono da loja concessionária, criou o seguinte código:
Assim, uma peça de preço Cr$ 1.200,00 (mil e duzentos cruzeiros – moeda da época) era codificada por Cr$ J.OXX,XX.
Voltando ao caso da correia. Meu irmão olhou para o código e deu o preço. O cliente pediu desconto. Ele então olhou de novo o código e deu um certo desconto. Até aí foi tudo bem. Ele tinha autorização para dar descontos, mas não podia aceitar, em hipótese alguma, pagamentos em cheque, muito menos de pessoas de fora da cidade, quanto mais de outro estado! O camioneiro disse então que aceitava o desconto, mas só podia pagar com cheque. Ariovaldo não teve dúvidas, tirou a correia de cima do balcão e retornou-a ao seu local no gancho da parede. O camioneiro se alterou, argumentou que não havia sentido em não aceitar cheque para uma peça de pouco valor e fez um apelo solicitando compreensão para a sua condição de desespero: caminhão quebrado na estrada, sem dinheiro e sem perspectivas de concluir a viagem por causa de uma simples correia. Por outro lado, nós tínhamos ordens expressas do Salomão para não aceitar cheque de ninguém e, também já conhecíamos o envelope de cheques sem fundos que havia no cofre da loja - todos oriundos da mesma historia triste. Com a negativa peremptória do Ariovaldo de não aceitar o cheque o camioneiro fez um escândalo chamando pelo dono da loja. Para o azar dele, o Salomão não estava presente e o impasse não se resolvia. Chegaram as 11:10 horas. O Ariovaldo pediu licença ao cliente para fechar a loja. O cliente não arredou pé e berrava mais alto ainda: Moleque, filho duma puta, me dá a minha correia se não daqui eu não saio! Nesta altura, outros clientes e alguns mecânicos da própria concessionária que já estavam deixando o trabalho nos socorreram e conseguiram fazer com que o camioneiro saísse da loja. Porem ele aos berros ameaçou: eu vou mas volto com um revolver levo a correia ou mato esse moleque! Fechamos a loja por dentro, saímos pelas portas do fundo. Para não ter problemas ao invés de sair pela av. 7 de Setembro e encontrar de novo o gaucho, saímos pelos fundos da oficina, na av. Djalma Dutra.
Ao voltar do almoço estávamos ainda com algum receio de encontrar o camioneiro. Para nossa surpresa ele não estava mais na porta da loja. Nossa alegria se transformou em pânico quando pelas 13:00 horas o homem entrou na loja com um revolver 38 numa mão e o cheque na outra e gritou: eu quero a minha correia!
Nossa sorte foi que o Salomão, logo após o almoço já se encontrava na loja. Saiu da sua escrivaninha nos fundos, veio até o balcão, pediu calma ao camioneiro e “aceitou” o cheque. O homem então foi embora com a sua correia, seu revolver no bolso e o seu orgulho recuperado.
Após a saída do homem o Salomão não fez comentários. Não recebemos críticas, elogios ou conselhos para o nosso comportamento. Nós também nada justificamos ou reclamamos. Embora assustados, controlamos o nosso medo e continuamos atendendo outros clientes no balcão da loja até o final do expediente, as 17:30.
Neste episódio de extremismos, fruto da cultura de autoritarismo da época, em que a austeridade se banalizava e fazia parte do cotidiano das pessoas ficou comprovado o que todo mundo respeitava: O Salomão tinha autoridade de patrão, de dono da loja. O Ariovaldo, por outro lado, adolescente jovem e pobre, já tinha atitude de um empregado adulto e de confiança! Por isso, continuamos trabalhando, lá na loja do Salomão (AUTO MECÂNICA 7 DE SETEMBRO) por mais 05 anos!


E OS PARAGUAIOS DA USP
DICO PARAGUAIO
Por Haroldo Lamps
Em 1975, aos 22 anos, tendo sido aprovado no vestibular de engenharia, fui morar no CREU – USP: Conjunto Residencial dos Estudantes da USP, isto é, no alojamento da Escola de Engenharia de São Carlos, dentro do campus da USP. Este benefício era direcionado aos estudantes mais pobres que para acessa-lo, eram submetidos a um processo de seleção.
Os candidatos tinham que fazer uma declaração, uma espécie de redação, expondo suas situações econômicas e das suas famílias, explicando os motivos e esclarecendo os “porquês” da necessidade desta moradia gratuita. Então, uma comissão julgadora, formada por três pessoas: um professor da universidade e dois ex-moradores do CREU, julgavam os pedidos de moradia gratuita e o benefício era concedido “aqueles que tinham mais carências”. Me lembro que, logo após minha formatura em 1.980, fiz parte de uma destas comissões julgadoras, como ex-morador, o que me deixou muito orgulhoso e feliz pelo reconhecimento que os moradores remanescentes tinham da minha pessoa como colega e líder estudantil, no período em que estudei na USP.
No alojamento moravam em torno de 100 estudantes em quartos de duas e três pessoas.
No primeiro ano de alojamento, eu morei num quarto de três pessoas junto com o Antonio e o Miguel, dois paraguaios que, pela política da época, haviam acessado a USP através de convênios educacionais entre o Brasil e o Paraguai.
Depois de alguns meses, descobri que o Miguel era um violonista exímio, tendo estudado violão clássico no Paraguai. Eles tinham um outro colega paraguaio, o Cezar que além de tocar violão muito bem, tinha uma voz excepcional, de timbre muito pessoal e de um enorme alcance, passando de uma oitava a outra sem nenhum esforço. Nós na USP, sempre que possível, íamos até bares de São Carlos, onde eles se apresentavam e eu particularmente, também acompanhava os ensaios no alojamento. Foi com eles que aprendi a tocar algumas guarânias. Em todo final de semana, quando eu retornava para Araraquara, comentava com o meu pai, sobre o Miguel e o Cezar, afirmando que eles eram sensacionais e que realmente arrasavam quando cantavam as suas músicas latinas, principalmente as músicas paraguaias. Meu pai, com o seu jeito de caipira astuto, dava um sorriso maroto e dizia “traz eles aqui qualquer dia destes pra gente cantar junto”. No fundo ia disfarçando seu pensamento – “O Lampião pensa que sabe, mas ainda tem muito a aprender sobre música sertaneja. Não vou perder o meu tempo com estes gringos”.
Importante esclarecer que no tempo da ditadura, dentro das universidades, nós fazíamos peças de teatro e shows musicais sempre motivados pelo repudio a ditadura. Era uma forma de manter “aceso” o nosso sentimento e o nosso pensamento como seres livres.
Os artistas nacionais, principalmente aqueles que haviam participado dos festivais e que lutavam pelo retorno da democracia, tinham muita dificuldade para se apresentar em público devido a censura e, a USP e a PUC abriam espaço para que eles se apresentassem nos “campus” porque eram consideradas terrenos invioláveis, abriam espaços para manifestações contrárias a ditadura. Assim pudemos ver shows do Chico, Caetano, João Bosco, MPB 4, etc.
Meu pai, era uma pessoa muito conhecida em Araraquara, principalmente pela sua índole de cantor e compositor de músicas sertanejas, sendo que ficou conhecido na região como Dico Paraguaio. O Dico Paraguaio era jurado de um programa de cantores de música sertaneja na Rádio Voz da Araraquarense, comandado nos domingos de manhã, pelo locutor e apresentador Compadre Moreira. Toda vez que eu falava ao meu pai dos meus amigos artistas paraguaios, ele dava aquele sorriso irônico: “O Lampião pode ser estudante de engenharia, mas não entende nada de música sertaneja”. Até que num belo fim de semana pedi a ele que aguardasse em casa no domingo, porque eu tinha convidado meus amigos paraguaios para nos visitar e, cantar pra gente as suas canções paraguaias.
O Dico Paraguaio, montou então um plano: vou logo cedo ao programa de calouros e, no final convido a melhor dupla sertaneja da cidade para ir até a minha casa pra cantar umas modas sertanejas. Quero ver se estes gringos são de fato muito bons e se depois de ouvirem a dupla araraquarense, vão ter coragem de se apresentar ou pegar o rumo de volta pra São Carlos!
Enquanto o Dico Paraguaio foi para o auditório da Radio Voz da Araraquarense, eu fui até a estação rodoviária, para receber os meus amigos e leva-los para casa.
Quando chegamos em casa, o Dico Paraguaio já estava lá com a dupla escolhida por ele: Chico Bento e Castelhano. Esta dupla era de fato muito boa. Eram afinadíssimos e tocavam muito bem. Porém o a parte mais abusada do plano do Dico Paraguaio estava por acontecer: quando eu e os paraguaios abrimos a porta da sala, Chico Bento e Castelhano começaram a cantar “Galopeira”, em português, é claro. Foi a pior coisa que fizeram. Os gringos foram “desembainhando” seus violões e, quando a dupla araraquarense terminou a música os gringos emendaram, no “mesmo tom”, porém em espanhol. Meus Deus como este Cezar cantava e, quando chegava na parte da “Galopeiiiiiiiiiiraaaaaaaa”, ele esticava alguns compassos só pra humilhar os araraquarenses.
Resultado disto tudo: quem pegou o rumo de casa e saiu de fininho foram Chico Bento e Castelhano.
O Dico Paraguaio então não só aplaudiu e acolheu os paraguaios como também chamou o Compadre Moreira pra conhecer “uma dupla internacional”.
Me lembro que cantamos a tarde inteira e, ele não queria que os gringos fossem embora.
Com o passar dos meses, meu pai e minha mãe ainda foram convidados pelo Cezar para serem seus padrinhos de casamento com uma brasileira, em São Carlos. Eles aceitaram e me deixaram muito feliz,
Esta é mais uma história ligada a música, músicos e artistas do nosso convívio, que nunca chegaram a fazer sucesso, mas que não podem ficar esquecidos e que me trazem boas lembranças, quando voltam a minha memória.
BUENAS!
O PROFESSOR REGINALDO
Por Haroldo Lamps
Ao olhar para trás, depois de tantos anos, aumenta mais a minha impressão de que ser o irmão mais velho, ser a referência da família (O Chefe), sempre foi e sempre será uma missão difícil de executar. No nosso caso foi ainda mais difícil porque crescemos debaixo do regime militar, nos anos do milagre econômico. Naquela época o paradigma do jovem bem-sucedido, que tinha tudo para se dar bem na vida era aquele oriundo de famílias da classe media com uma condição socioeconômica já pré-estabelecida. Apenas seguindo velhas receitas, como por exemplo, ter uma profissão ou continuar cuidando da lojinha dos pais era o suficiente para um futuro garantido!
Servir de referência para mais sete irmãos e uma irmã, nascidos e criados numa família pobre, sem nenhuma referência social ou econômica, com certeza traduzia um peso muito grande, quase que impossível de carregar.
Como toda família pobre, por outro lado, convivíamos com o problema de como ascender na escala social. Para dificultar ainda mais esta missão havia também mais uma boa pedra no caminho: por influência dos pais sempre tivemos um senso extremado de honestidade. Ponha nisto uma pitada de altivez, aquele orgulho caipira que nunca nos abandonou e a missão, por si só, era quase impossível de ter sucesso! Descobrir caminhos para nos levar de onde saímos para chegar onde chegamos era de fato uma missão impossível – graças a Deus para o Ariovaldo, quase impossível, porque aqui estamos; sinal de que o Chefe cumpriu muito bem a sua missão e foi uma extraordinária referência!
Graças a impertinência, a ousadia e, algumas vezes à ausência de modos, aprendemos com ele a nunca medir o tamanho dos problemas, mas a reunir esforços para superar toda e qualquer barreira.
Estudar para ser doutor a qualquer preço e não mostrar a bunda prá ninguém foram os ensinamentos básicos que recebemos da mãe e do pai. Meu irmão mais velho, o Chefe, não concluiu o curso superior. Porém, tem doutorado em como driblar os problemas da vida. Sempre emotivo, honesto, altivo e trabalhador serviu de exemplo aos irmãos mais jovens. Não fosse por ele eu não teria me formado. Sua influência foi fundamental para que eu chegasse até o curso colegial e, a partir de então aprendesse a caminhar com pernas próprias. Trabalhamos juntos durante seis anos na loja de autopeças do Salomão Haddad. Neste período, praticamente durante todos os dias, pude dispor de uma boa parte do meu tempo de trabalho para estudar. Atendíamos os clientes com uma mão no talão de notas fiscais e a outra folheando cadernos e livros escolares, sempre estrategicamente “escondidos” embaixo do balcão. Obviamente, como meu chefe, ele fazia vista grossa quando eu priorizava meu tempo estudando ao invés de trabalhar. A partir do momento em que passamos a trabalhar juntos, sempre fui o melhor aluno da classe. Ser o melhor na escola para mim era uma postura de resposta à personalidade mais forte do Chefe, sempre o mais “ouvido” entre os amigos e o mais “reconhecido” entre as pessoas mais velhas, mas de alguma forma sempre foi também uma atitude de gratidão. Com o tempo, competia com ele em tudo. Queria ser melhor do que ele também no trabalho ao ponto de memorizar a maioria dos códigos das peças de reposição, suas posições nas prateleiras, todas as medidas de porcas e parafusos (o que espanta meus amigos engenheiros até hoje) e, incrivelmente, decorar os números dos telefones da maioria dos clientes. Mais do que isso, queria ter uma caligrafia mais bonita do que a dele. Isto eu nunca consegui! Aquelas notas fiscais preenchidas pelo “Secretário do Salomão” eram uma coisa de causar inveja. Porém ao tentar imitar a sua caligrafia ganhei um senso de organização nas coisas que escrevia, aprendi a fazer umas letras de forma redondinhas que sempre me foram muito úteis como professor de cursinho e na minha atividade de engenharia.
Jamais conheci o Professor Reginaldo. Era um professor de português do IEBA – Instituto de Educação Bento de Abreu. Meu irmão comentava muito as ideias dele de forma que eu também fiquei influenciado. Meu irmão falava tanto do professor Reginaldo que a gente ficava com vontade de ter um professor de mesmo calibre.
Foi por influencia do professor Reginaldo que tivemos os primeiros contatos com a Tropicália de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Conta-se que o professor Reginaldo, em seu discurso como paraninfo da turma do cientifico desafiou a direção da escola, que na época era escolhida por lideranças políticas ligadas a ditadura, dizendo que apesar da ditadura tudo mudaria e poderia ser divino e maravilhoso, referindo-se à música do Caetano Veloso. Eu não entendia bem estas coisas, mas confiava no que o Chefe falava e, assim fui formando também a minha personalidade. Por influencia do professor Reginaldo compramos a enciclopédia CONHECER. Depois compramos uma coleção com o melhor da MPB que trazia discos de vinil com oito faixas dentro de um encarte que explicava a obra do artista. Descobrimos então Chico Buarque, Geraldo Vandré, João Bosco, Dorival Caymmi, Paulinho da Viola, etc. Em seguida compramos também os clássicos da literatura mundial. Creio até que muito, da nossa maneira de ser foi inspirada então num personagem de Sthendal, o Julian Sorel, do Livro O Vermelho e o Negro. Julian era um sujeito de origem humilde que chegou a decorar a bíblia em latim para poder ser reconhecido entre os nobres da França. Nós, a nossa moda, decorávamos catálogos de peças, endereços, telefones e, com certeza, muitas lições da escola e muitos trechos de livros indicados pelo Professor Reginaldo.
Hoje sabemos que aquelas velhas receitas, da profissão ou da lojinha dos pais, eram referências totalmente equivocadas. Se o Chefe nos tivesse guiado por elas não teríamos tido nenhuma chance de sobreviver. Não apenas porque nunca nada nos foi dado de mãos beijadas, mas porque mesmo muitas pessoas que conviveram conosco naquela época, hoje amargam uma vida dura, mais humilde que a nossa e sem nenhuma perspectiva. Graças ao Ariovaldo seguimos um caminho diferente. Ansiávamos por aprender coisas novas que nos pudessem tirar do estado de pobreza em que vivíamos. Hoje é comum se ouvir falar que a única coisa certa é a de que tudo muda a todo instante: o que vale hoje pode não ter valor para o amanhã. Nós aprendemos isso com muito esforço, removendo pedra sobre pedra, sempre em busca de alternativas que pudessem viabilizar o nosso futuro, habilidade que desenvolvemos, sem a qual, seguramente, não estaríamos onde estamos. Graças a Deus, ao professor Reginaldo e ao Ariovaldo – o nosso Chefe!
OS FILHOS SÃO COMO OS DEDOS DAS MÃOS
Por Haroldo Lamps & Anselmo Caparica
Muitas pessoas da minha geração, ao chegarem à adolescência, precisavam sair de casa e começar a vida longe da família – fosse para trabalhar ou, como no meu caso para estudar.
Foi assim que deixei Araraquara e nunca mais voltei a morar lá.
Cada visita à cidade natal, reencontrar meus pais era sempre um evento especial – daqueles de “matar a saudade” com conversa boa e comida simples: arroz, feijão, bife e salada de alface, tomate e cebola. Hoje, meus pais já faleceram, e esta crônica tem muito da saudade deles.
Eles sempre foram humildes, trabalhadores e enfrentaram muitas dificuldades. Minha mãe fazia serviços de costura para complementar a renda; meu pai era ferroviário, ganhava pouco. Tiveram nove filhos. Apesar das limitações, acreditavam que a única herança que podiam deixar era a educação. Estudar era a regra. E assim fomos criados.
Trabalhei de dia, estudei á noite formei-me em Engenharia Mecânica e com o tempo, construí uma carreira em empresas multinacionais.
Certa vez voltei a Araraquara e encontrei minha mãe no quintal tomando café com as vizinhas. Era fim de tarde, com bolinhos pingados e conversa solta. Uma das amigas, a dona Bruna, disse:
Maria, de todas nós você e a que teve mais filhos e mais dificuldades. E olha só, todos os seus filhos estão formados e bem de vida. Qual foi o segredo?
Minha mãe respondeu sem rodeios:
Filhos são como os dedos das mãos: todos são iguais, mas todos são diferentes, eu tratei cada um conforme o seu jeito!
Esta frase ficou comigo.
Anos depois, eu estava bem empregado quando um amigo e colega de trabalho, Celso Ragazzo me disse:
- Haroldão, te indiquei para uma vaga de gerente geral de engenharia numa multinacional americana. A vaga é tua cara. Só tem um detalhe: como já passei o seu nome e telefone, agora você tem que ir. Senão eu fico mal com os caras.
Respondi meio contrariado:
Celsão eu tô bem aqui. Pra que procurar sarna pra me coçar?
Ele replicou:
Eu avisei que você ia. Agora você tem que ir.
E fui!
Participei do processo seletivo que incluía várias entrevistas. Na final, em inglês, conversei com um diretor americano e com o presidente da empresa no Brasil, um argentino.
No fim da conversa o americano disse:
Você tem o perfil técnico, a experiencia, a motivação, se comunica muito bem. Mas falta um ponto importante: quero saber como você lida com os clientes.
Respondi contando a história do café da tarde com a minha mãe e conclui:
Assim como minha Mãe tratava os filhos, “acredito que os clientes também são como os dedos das mãos: todos são iguais, mas todos são diferentes. Cada um tem seu jeito”.
O americano sorriu e disse o cargo é seu. Você vai ser o braço direito deste senhor aqui, o presidente da empresa no Brasil.
Dias depois fui chamado para “acertar os detalhes da contratação”. Foi aí que a gerente de RH me disse que o salário seria menor do que o que eu já ganhava - porque a perspectiva de crescimento era maior. Quando eu questionei o tamanho da responsabilidade o argentino presidente foi curto e grosso:
Na verdade, eu já tenho um braço direito. O que estou precisando mesmo é de um braço esquerdo.
Levantei, agradeci, disse muito obrigado e que meu interesse acabava ali.
Eles ficaram furiosos. Como assim, recusar uma proposta dessas? Depois de tantas entrevistas?
Respondi com calma:
Talvez valha a pena vocês repensarem a forma como estão conduzindo as contratações. Quando se procuraum braço direito e depois se oferece uma vaga para um braço esquerdo com salário menor, algo está fora do lugar. Fui embora. Nunca mais voltei. Nem quando me ligaram dias depois com nova proposta.
Também aprendi com meus pais que aceitar menos do que você merece não é humildade é abrir mão do seu próprio valor. O que vale mesmo são os princípios e o respeito por quem a gente é.
A sabedoria da minha mãe me ajudou a conquistar aquela vaga. Mas foi essa mesma sabedoria que me ensinou a dizer não e sair de cabeça erguida.
LEMBRANÇAS PELA PARTIDA DE UM MARTIR
Por Edson Tamoio
Hoje, quinta feira, ao ler a Ilustríssima de domingo passado, fiquei sabendo que no começo deste julho partiu desta vida terrena Jean Claude Bernadet. Eu me admirava sempre que sabia que ainda estava vivo, pois ele foi contaminado pelo vírus HIV no final dos anos de 1980. Quase todos que foram acometidos por essa síndrome, nessa época, não resistiram à sua devastação. Ao ler seu obituário hoje, feito por um amigo seu, também da área de cinema, como ele, entendi porque ele resistiu tanto. Era belga de nascimento mas brasileiro de identidade. Conheci-o pessoalmente em 1975, quando o convidamos para proferir uma palestra no saudoso CAASO, no espaço do restaurante, lá em São Carlos. Mas já o admirava pelo o que escrevia sobre cinema nos jornais chamados alternativos, como O Pasquim, Movimento, Lampião e outros dos quais não me ocorrem seus nomes. Ele escrevia com paixão e simplicidade, gostava de ser claro, de não deixar o leitor na mão. Amava o cinema brasileiro e se dedicava a entendê-lo, a participar dele como ator, roteirista, historiador e crítico. Nos anos de chumbo, a universidade era talvez o único espaço onde era permitido discutir-se a sociedade politicamente. A ditadura assim como ceifou os cientistas e pensadores em geral de exercerem os seus domínios de conhecimento e nos ajudar a encontrar os nossos caminhos dentro de um mundo complexo, arrebatou os nossos principais artistas, impedindo a nossa pujança também na área do cinema. Lembro-me de seu sotaque francês mas falando com fluência e encanto. Tinha grande apreço, claro, pelo cinema novo mas achava que o cinema brasileiro fazia-se mais representativo por obras que retratavam de maneira mais direta e dramaturgicamente mais simples o cotidiano da sofrida população de subúrbio como São Paulo S.A. e Eles não usam Black- Tie. Da sua palestra lembro-me que fiz uma pergunta a ele sobre como ele definia o cinema novo, e ele, com sua empatia me explicou e também ao público tudo o que era o cinema novo, mostrando um domínio do Brasil do qual nós éramos alienados. Depois da palestra fomos a um boteco e continuamos a conversar por longas horas e ele sempre atencioso e paciente com a nossa ignorância. Ainda recentemente, estava eu e minha mulher num dos cinemas de São Paulo, quase vazio e na fileira da frente lá estava ele, a assistir aquela película nacional com muita compenetração, apesar dos seus mais de 80 anos. Reconheci-o prontamente ao acender a luz e lhe dirigi um sorriso como se ele fosse um velho conhecido. Ele retribuiu e continuou percorrendo os créditos do filme até a última imagem ser projetada. Ah , eu disse que entendi agora porque ele resistiu tanto tendo AIDS contraída logo nos seus primórdios. Porque ele era muito resiliente e não se entregava para os males do corpo. Aliás, soube pelo seu obituário que ele teve uma recidiva de um câncer de próstata, sem mais tê-la, pois ela tinha sido removida totalmente justamente por causa de um câncer que nela se desenvolvera. Nessa recidiva, constatada há quase uma década ele não seguiu a prescrição médica, negando -se a fazer o tratamento quimioterápico, pois sentiu descrédito pela medicina que o diagnosticou com um câncer de uma glândula que já não existia em seu corpo. Continuou amando o cinema brasileiro, escrevendo sobre ele, interessando-se cada vez mais por conhecê -lo e traduzí-lo, e assim foi até dar o último suspiro há alguns dias. Por isso que ele não se foi no final da década de 1980, resistiu bravamente com sua alma grandiosa . Adeus JCB, derramei muitas lágrimas por você hoje e sempre lembrarei de si ao pensar sobre o cinema brasileiro, desejando que ele tenha o mesmo vigor que você devotou a ele ao longo da sua passagem por aqui.
SUA VIDA PODE MUDAR: PÔE UM CANARINHO NA GAIOLA
Por Haroldo Lamps
− Oi de casa, tudo bem? Oi Tia Elvira, como vai? Tem café nesta casa?
− Nossa Haroldo a quanto tempo não te vejo. Acho que você se esqueceu de mim! Entra, eu vou fazer um café pra você.
− Tia não sei se você vai acreditar: eu estava agora pouco na casa da minha da minha mãe, naquele quarto que tem janela praticamente colada para a sala da casa da Maria, tentando tirar uma soneca. Mas foi impossível porque a conversa do lado de lá atrapalhava o meu sono. Assim, eu descobri que ela virou cartomante e, agora a tarde não tem condições de tirar uma soneca porque a gente ouve tudo o que rola na sala da casa dela. Sinceramente tia, não dava mais pra aguentar aquelas “adivinhações”. Tinham algumas que até faziam sentido, mas a maioria dava vontade de rir. Coisas obvias do tipo:
Entre as suas amigas tem uma pessoa que não gosta de você.
Tem uma outra pessoa que está tentando melar o seu namoro com o Fulaninho.
Olha o fulaninho quase traiu você na festa que foi feita onde ele trabalha, etc.
− Tia tá na cara que tudo isso é armação.
− Eh, eh Haroldo. Isto não é novidade pra ninguém. Ela já faz isto há muito tempo e tem uma boa freguesia.
− Tia não acredito que ainda tem gente que leva isto a sério e procura ajuda com cartomantes?
− Vixe e como tem. Eu mesma já fui uma cartomante. Quem lê a sorte precisa ter muita habilidade, intuição, sensibilidade e percepção. E se tem talento pode ajudar outras pessoas. No meu tempo eu cheguei a ter uma freguesia bem grande. Eu já fiz coisas que são difíceis de acreditar. Vou te contar um caso que nunca contei pra ninguém. Sei que você tem compreensão e que tem discrição. Também acho que esta história, de alguma forma, poderá ajudá-lo a entender melhor as pessoas, principalmente aquelas que estão do seu lado e que trabalham com você.
− Quando eu era cartomante, a casa em que eu morava tinha uma sala bem apropriada, e ninguém conseguia ouvir o que eu falava com os meus clientes. Numa tarde, um carro chique e novinho parou em frente à minha casa. Bateram palmas e, quando eu fui atender, um senhor, assim de mais ou menos sessenta anos, pediu com educação se eu poderia atende-lo. Eu convidei-o a entrar e fomos até a sala de consultas. Assim que nos acomodamos ele começou a falar:
− Dona Elvira, eu estou desesperado. Me falaram muito da senhora e, me disseram que a senhora pode resolver os meus problemas. A SENHORA É A MINHA ULTIMA ESPERANÇA!
− Meu Senhor eu apenas leio o que está nas cartas. São as cartas que têm o poder de interpretar os acontecimentos!
− Dona Elvira eu vim aqui porque uma pessoa da minha confiança me falou que a senhora realmente tem o dom de interpretar o presente e prever o futuro. Deixa eu explicar pra senhora o que está acontecendo comigo:
− Depois de muitos anos de trabalho, afastei-me da direção da minha empresa e deixei a condução dos negócios com os meus filhos. Esta decisão foi tomada a dois anos atrás com muita prudência. Foi uma decisão tranquila porque meus filhos cresceram trabalhando comigo e já tinham maturidade. Porém, fui procurado por eles a três meses atras e me disseram que a empresa está à beira da falência e, ninguém sabe como sair deste buraco. Nós estamos devendo pra todo mundo e eu não tenho mais como arranjar dinheiro, não tenho mais tempo pra negociar com credores e não encontro pessoas capazes de me ajudar a corrigir o rumo que as coisas estão tomando. Minha última esperança é a senhora. A senhora tem que me dizer se isto tem conserto ou se a falência é o que nos resta!
− Bem o que o senhor está me falando é muito grave. Mas como eu disse as cartas é que vão revelar o que pode ser feito. As cartas já estão na mesa e na medida em que vamos conversando, eu vou lendo cada uma delas e o diagnóstico será dito por elas.
− Nesse momento Haroldo eu estava gelada e não sabia por onde começar. Tinha tido muitos casos complicados, mas nenhum como aquele. O homem era dono de uma empresa muito grande e famosa. Então eu tive uma intuição e disse pra ele:
− O senhor pode não acreditar, mas esta carta está dizendo que o senhor tem que comprar uma gaiola com um canarinho do reino.
− Como assim dona Elvira???
− Bom, meu senhor, é o que está aqui.... Esta outra carta está dizendo que o senhor tem que levar esta gaiola com o canarinho para a sua fábrica..... Esta terceira carta diz que o senhor tem que colocar a gaiola com o canarinho bem no meio da sua fábrica.... Deixa-me tirar mais uma carta.....Nossa aqui está dizendo que o senhor tem que cuidar do canarinho. Nada pode faltar pra ele: nada - nem agua nem alpiste.....Por fim esta carta esta dizendo que se o canarinho morrer a sua empresa de fato vai falir!
− Dona Elvira se falência da minha fabrica tem a ver com a vida de um canarinho, eu vou agora mesmo comprar a gaiola mais linda, um canarinho com um canto bem bonito e vou botar toda a gerencia da empresa pra cuidar dele.
− Eu creio que o senhor não entendeu bem a mensagem das cartas: NINGUÉM, A NÃO SER O SENHOR MESMO, DEVE CUIDAR DO CANARINHO? È o que está escrito aqui.
− Como assim dona Elvira eu nunca tratei de canarinho. Como é que eu vou fazer isto?
− Bom como o senhor vai fazer aqui não diz nada, mas diz que tem que ser o senhor e que ele tem que ficar bem no meio da fábrica!
− Dona Elvira, que estranho. Mas me falaram que a senhora tem o dom. Muito obrigado.
− E assim Haroldo, aquele senhor saiu balançando a cabeça e foi embora. Eu fiquei muito preocupada, mas nada mais tinha que dizer além daquela “premonição.
− Passaram-se alguns meses. Eu já estava quase esquecendo aquele caso, quando o mesmo carro parou de novo em frente a minha casa. Quando percebi que era ele, gelei de novo. Você sabe, a maioria das vezes as pessoas retornam logo em seguida para agradecer “aos conselhos”, mas, algumas vezes voltam pra “tirar satisfações”.
− Qual foi a minha surpresa quando nos cumprimentamos: ele tirou um buquê de flores e veio me agradecer.
− Dona Elvira muito obrigado pelo que me fez. Tudo foi entrando nos eixos desde que comprei o canarinho e o coloquei bem no meio da fábrica. Cheguei à seguinte conclusão: Na realidade a fábrica estava “abandonada”. Muitos velhos colaboradores também já não tinham mais aquela fibra e a vontade de trabalhar como “nos velhos tempos”. Porém, quando me viram indo a fábrica todos os dias, inclusive sábados e domingos, de manhã e de tarde sentiram que o velho líder tinha voltado com tudo. Depois de alguns dias eu mesmo percebi que todo mundo achava que “tratar do canarinho” era apenas um álibi para ver com meus próprios olhos o dia a dia da fábrica, acompanhar a realidade e participar de todas as decisões. Até meus filhos também mudaram de rotina e passaram a ver as coisas mais de perto. A SENHORA NOS SALVOU! MAIS UMA VEZ MUITO OBRIGADO!
− Nossa tia que história magnifica. Fiquei mesmo encantado!.
− Pois é Haroldo, quando as coisas não andarem bem no seu trabalho ou na sua vida profissional, se lembre disso: uma gaiola com um canarinho pode mudar a sua vida!
CONSELHO DO POETA NAURO MACHADO
Por Haroldo Lamps
Acredito que todas as pessoas possuem dons e habilidades naturais. Creio também que nem sempre é possível a utilização deles para o exercício da própria profissão. Comigo foi assim: eu sou engenheiro, mas em mim nunca secou a veia de “poeta, compositor e cantor”. Porém, num momento da vida, já com mulher e filhos, para não prejudicar o futuro, me decidi pela engenharia e não me arrependo. O exercício desta profissão, de certa forma, me privilegiou com fatos e oportunidades que, estimulam a minha veia artística.
Como muitas pessoas que escolheram a profissão de engenheiro, com o passar dos anos, vivenciei as três formas mais comuns desta profissão:
1. a elaboração de projetos, na qual o profissional exerce atividade puramente mental,
2. supervisão e controle de produção, na qual o profissional depende da sua capacidade de relacionamento com subordinados e chefias,
3.Fiscalização e assistência de obras, na qual o profissional tem que atuar “dentro do canteiro de obras”. Neste caso ele tem que se dedicar as obras e, acaba tendo uma vida nômade: são os profissionais “do trecho”, pessoas que vivem viajando de um local para outro, conhecem o país inteiro, mas estão sempre longe da família.
Um “bom engenheiro” em geral começa a sua carreira trabalhando em fábricas ou construções e, depois de ter contato com o “chão de fábrica”, isto é, depois de ter obtido experiencias praticas, exerce com mais competência as atividades de projeto, porque consegue entender com mais facilidade, as aplicações das teorias, normas e procedimentos. Coisas que pela sua natureza são muito maçantes, demandam muito tempo e experiencia para serem absorvidas e utilizadas com competência.
Nesta crônica eu abordo um fato da minha vida, num período em que “fui um cara do trecho”.
Nos anos de 2011, 2012 e 2013 trabalhei no PROJETO CYCLONE 4. Empreendimento financiado pelos governos do Brasil e da Ucrânia. Naquela época foi formada uma empresa binacional: a ACS - ALCÂNTARA CYCLONE SPACE, que era responsável pela construção de uma nova base de lançamento de foguetes em Alcântara, cidade pequena, porém histórica, próxima a São Luiz, no estado do Maranhão.
Nos dias úteis da semana nosso envolvimento com a fiscalização da obra era total. Por esta razão, morávamos em Alcantara em ‘Pousadas” alugadas pela CT MAIN, empresa responsável pelo gerenciamento da obra e que me contratou. Como Alcântara era uma cidade pequena, em torno de 20.000 habitantes, os profissionais como eu, em funções gerenciais, tinham o direito de passar todos os finais de semana em hotéis de São Luiz, com todos os custos pagos.
Guardo na memória belas lembranças, com momentos inesquecíveis em São Luis: visitas ao centro histórico, caminhadas pelas praias ensolaradas, refeições em restaurantes típicos e passeios aos sábados na principal rua de comercio da cidde, a Rua Grande.
Numa dessas ocasiões, antes do inicio do passeio pela Rua Grande, estacionei o carro numa esquina próxima a Catedral de São Luis do Maranhão e, ao sair do carro ouvi vários assobios. Pensei que não se dirigiam para mim e não reagi. Porém uma pessoa, a uns vinte metros de distância, que estava sentada em uma cadeira de engraxate gritou:
- Hei cara é com você mesmo! Olha para trás, na sua direita, olha bem porque quem está ali, encostado naquela porta é o maior poeta maranhense. É o Nauro Machado. Vai lá e cumprimenta ele. Você não pode perder esta chance! Então eu olhei para trás, na minha direita, e percebi que havia um armazém com as portas abertas e, encostado em uma delas estava um senhor de meia idade, relativamente abatido, talvez embriagado. Eu, apressadamente, julguei que ele estava ainda sob o efeito do porre da madrugada e, então arrisquei:
- Oi poeta, tudo bem com você? Então ele respondeu:
- Mais ou menos meu filho e com você?
Da forma como ele respondeu, com a voz um pouco embargada, aumentou a minha suspeita de que ele, de fato, ainda estava sob efeito de embriaguez e, então eu arrisquei um pouco mais no nosso diálogo:
Poxa poeta, eu também faço poesias, mas quando tomo uns porres a inspiração desaparece. Estas coisas acontecem. Não fica triste não!
Ele então me respondeu de forma taxativa, porém agora com a voz muito firme:
POIS É MEU FILHO, DA PROXIMA VEZ LEVA UM LÁPIS!
Faço agora um esclarecimento: quando esta conversa aconteceu eu não conhecia a obra de Nauro Machado. Infelizmente ele veio a falecer pouco tempo depois e eu não tive a chance de me redimir, pedir desculpas e agradecer pelo conselho.
Em geral a minha intuição não falha quando conheço novas pessoas, aquela primeira impressão sempre acaba sendo comprovada. Mas este foi um dos grandes erros de julgamento da minha vida. Era de fato o Nauro Machado e eu perdi a chance de conversar um pouco mais com ele. Jamais deveria ter me aproximado dele daquela maneira, com aquela pecha de ironia.
Porem a resposta dele me marcou para toda a vida. O Poeta não me agrediu e também não desacreditou que eu também fosse poeta e, me deu a resposta que eu merecia.
Após a nossa conversa, quando passei em frente ao senhor que estava engraxando o sapato ele retrucou: você não acreditou em mim. O que você está fazendo aqui em São Luis? Eu então falei rapidamente da minha situação. Ele então triplicou. Pois é engenheiro, faça uma pesquisa sobre o Nauro e você vai ver que eu tenho razão.
Foi o que aconteceu. Descobri que o Nauro Machado era um poeta extraordinário. Porém, em todas as outras vezes que estive em São Luis, andei pelos mesmos lugares e não o encontrei.
Porém, o conselho que ele me deu permanece até hoje. Sempre levo um lápis comigo, porque a gente nunca sabe quando vai chegar uma inspiração verdadeira!
Se você que acabou de ler esta crônica também acredita que todas as pessoas tem dons e habilidades naturais, também compartilho o conselho que me foi dado, de poeta para poeta:
DA PROXIMA VEZ, LEVA UM LÁPIS!